ATELIÊ     RESIDÊNCIAS     EXPOSIÇÕES     NOTÍCIAS     SOBRE        


Onde a Carne se Faz Chama
Exposição individual Chico Silva

Centro Cultural Octo Marques.
Curadoria Paulo Henrique Silva.  
04/04 a 04/05 de 2025




"Onde a carne se faz chama", primeira exposição individual de Chico Silva em Goiânia, apresenta cerca de 100 obras – dentre desenhos, pinturas e esculturas. A mostra lança um olhar retrospectivo sobre a produção do artista, apresentando obras presentes em diferentes coleções privadas do estado, como também uma série de pinturas inéditas produzidas durante a residência artística de Chico Silva no Barranco Ateliê entre 2024 e 2025.




Fragmentos de um manifesto visual: entre o Simbolismo e o cotidiano
Texto por Paulo Henrique Silva, curador da mostra.

A primeira exposição individual de Chico Silva em Goiânia configura-se como uma experiência estética imersiva, na qual o conjunto de obras dialoga com as contradições e tensões que permeiam tanto a sociedade contemporânea quanto a própria existência humana. Trata-se de um manifesto visual que transcende a mera representação, firmando-se como um instrumento de denúncia, resistência e ressignificação. Organizada em quatro conjuntos de trabalhos da produção atual do artista – a representação do corpo feminino; a fusão entre o humano e o bestial, por meio da exibição de animais e figuras antropomórficas; a série política com ênfase na capital Brasília, e a transformação de troncos e galhos em esculturas –, a mostra revela um percurso que se recusa a acomodar-se diante das injustiças e das opressões estruturais que marcam o cotidiano.

Na série dedicada à representação do corpo negro, Silva emprega um traço cru e uma paleta intensa para expor, sem rodeios, os mecanismos de violência e subjugação que incidem, de forma naturalizada, sobre as mulheres – sobretudo as negras –, cujas existências são frequentemente reduzidas a meros emblemas de fragilidade e exploração. Ao evidenciar cenas de abuso, objetificação e silenciamento, o artista não apenas retrata a corporalidade feminina, mas a transforma em um espaço de resistência, onde cada linha e cada matiz se constituem como um clamor de repúdio contra um sistema que erotiza, mercantiliza e desumaniza o corpo, reiterando a urgência de reavaliar a relação entre estética e política na atualidade.

Nesse contexto, a segunda vertente da produção de Silva propõe uma dialética entre o humano e o bestial, na qual animais, figuras antropomórficas e representações humanas se entrelaçam para criar um universo simbólico repleto de ambiguidades e intensas sobreposições. Essa fusão não se configura meramente como um exercício formal, mas assume a dimensão de uma metáfora poderosa, que evoca forças arcaicas e instintos primordiais, ainda presentes no inconsciente coletivo. As criaturas híbridas, com feições que oscilam entre o mítico e o grotesco, emergem de um imaginário onde sonho e ritual se confundem, proporcionando ao observador uma experiência quase onírica e inquietante.

A intensidade cromática, resultado do emprego de cores puras e vibrantes aplicadas de maneira quase chapada, amplifica a dramaticidade das composições, remetendo tanto à estética popular quanto à arte bruta, ao mesmo tempo em que propicia uma interpretação multifacetada dos temas que abordam desejo, violência e poder. Assim, o diálogo entre o sagrado e o profano, entre o real e o imaginário, configura-se como ponto de partida para uma reflexão acerca das forças que regem a existência humana, transformando a produção de Chico Silva em um convite ao reconhecimento e à aceitação das ambiguidades inerentes à condição de ser.

A terceira dimensão da exposição adentra o universo da crítica política, utilizando, em diversos trabalhos, a Capital Federal, Brasília, como palco simbólico para representar caos e fragilidade institucional. Nesta série, o artista constrói narrativas visuais que evocam cenários de devastação, nos quais helicópteros armados, edifícios em chamas e explosões quase apocalípticas se fundem para denunciar a vulnerabilidade das estruturas de poder e a iminência de um colapso social. A escolha de Brasília, cidade concebida como símbolo da modernidade e das instituições oficiais, não é fortuita, pois sua representação em chamas e ruínas questiona a solidez dos mecanismos que sustentam a ordem e a governabilidade. A utilização deliberada de cores intensas – sobretudo o vermelho e o preto – juntamente com traços marcados e composições que recordam cartazes de protesto, reforça o senso de urgência e alerta que permeia toda a narrativa visual. Assim, Silva não se restringe a uma mera reprodução ilustrativa de conflitos, mas envolve-se em uma crítica incisiva que denuncia a violência institucional e incita uma reflexão profunda acerca do papel do cidadão na manutenção ou contestação dos sistemas opressores.

Complementando essa carga de crítica e denúncia, a série de obras dedicada às esculturas em madeira revela um diálogo sensível entre o material orgânico e a intervenção artística, apontando para uma reconfiguração poética do cotidiano. Ao resgatar e trabalhar com fragmentos de troncos e galhos – elementos que trazem as marcas do tempo, fissuras e a própria história da natureza – o artista transforma o que poderia ser considerado descartável em peças impregnadas de memória e vitalidade. Cada escultura, com sua textura singular e a preservação das características inerentes à madeira, é elevada a um status quase ritual, no qual o encontro entre o orgânico e o urbano revela a possibilidade de redescobrir a energia presente em elementos que a rotina insiste em relegar ao esquecimento. Essa reconfiguração material evidencia a capacidade de transmutar a matéria bruta em um símbolo de renovação e persistência, propondo uma reflexão sobre a relação entre o ser humano e o meio natural. A madeira, com suas imperfeições e vestígios do tempo, torna-se um testemunho silencioso da resistência da natureza frente às imposições da urbanidade, evocando a ideia de que, mesmo fragmentada, a vida permanece capaz de se reinventar e inspirar.

Ao integrar essas quatro vertentes – a denúncia dos abusos sobre o corpo feminino, o encontro entre o humano e o bestial em cenas repletas de simbolismo, a representação política que utiliza elementos iconográficos dos três poderes e de Brasília como metáfora do colapso institucional, e a ressignificação da madeira – a produção de Silva impõe uma crítica social e política intensa, recusando-se a conformar-se com uma estética apolítica e superficial. Cada obra, ao revelar múltiplas camadas de significação, convida o observador a transcender a mera contemplação visual e a adentrar um universo de questionamentos acerca das relações de poder, da violência sistêmica e da imperiosa necessidade de reconfigurar o espaço urbano e a memória coletiva. Em uma era marcada por crises políticas, sociais e ambientais, a narrativa poética desenvolvida por Silva manifesta-se como uma resposta contundente aos desafios contemporâneos, oferecendo uma interpretação que, ao mesmo tempo em que denuncia os horrores da opressão, celebra a possibilidade de transformação e o resgate da dignidade humana.

A narrativa visual de Chico Silva, permeada pela tensão entre o real e o imaginário, configurase como um convite para repensar os modos de ver e experienciar a realidade, desafiando as convenções estéticas e as práticas estabelecidas. Ao transformar o corpo feminino em um símbolo de resistência, ao fundir o humano com o bestial em uma dança de instintos primordiais, ao retratar a capital Brasília como cenário de crise e vulnerabilidade institucional e, por fim, ao reconfigurar a madeira como um elemento carregado de poesia e memória, o artista compõe um mosaico multifacetado que dialoga com as grandes questões da existência. Essa pluralidade de significados e a intensidade da linguagem visual empregada fazem com que a exposição se insira de forma contundente no debate acerca da função social da arte, ressaltando seu papel insubstituível como instrumento de crítica, denúncia e transformação. 

Assim, ao integrar em sua obra elementos que oscilam entre o real e o simbólico, entre o orgânico e o urbano, Chico Silva não apenas reconstrói a narrativa da experiência humana, mas também propõe um paradigma no qual a crítica e a resistência se transformam em ferramentas indispensáveis para a mudança social. O conjunto de obras expostas, com sua intensidade e pluralidade, desafia o público a abandonar a passividade e a engajar-se em uma reflexão profunda sobre as contradições que permeiam nossa existência.





Fotos: Paulo Rezende